Dividindo devaneios
Lembro da primeira vez em que a
vi. Era entre as primeiras horas da madrugada, e estávamos juntas velando o
corpo de um senhor que morrera ao entardecer. Havia poucas pessoas na casa do
falecido, porém, o destino, ou algo semelhante me fez caminhar até a local onde
com ares de sono e olhos distantes ela estava. Observei-a por um pequeno
percurso de tempo, incrédula com a semelhança existente entre ela e Virginia
Woolf.
Nossos olhares cruzaram-se por
uma breve fração de segundos, porém o bastante para que eu pudesse encontrar
dentro daquele olhar uma linha de mistérios capaz de arrastar qualquer
individuo até o mais intimo poço de sua alma. Vi muito mais do que meus olhos
poderiam mostrar. E senti como se ali, diante daquele defunto que dormia tão
calmamente, das velas acesas, e de uma madrugada misteriosa, eu pudesse
encontrar-me comigo mesma, redescobrindo quem eu era, e o que fazia nesse
mundo.
-Pobre homem! Apesar da idade já
avançada possuía uma jovialidade visível e aflorada aos olhos daqueles que
conheceram sua vida e fizeram parte dela. Pessoas como ele não deveriam partir!-
Sua voz silenciosa era doce e firme. Forte ao ponto de me fazer despertar do
transe em que meus pensamentos estavam. Quis dizer-lhe algo, quem sabe minhas palavras
pudessem reconfortar - lá, mas calei-me. Não existia naquele instante nada mais
apropriado do que o silêncio fúnebre que a noite nos proporcionava.
Senti uma imensa necessidade de desvendar
os meus sonhos para aquela desconhecida mulher, fala-lhe dos meus devaneios e
toda a melancolia que se apoderou de mim momentos antes de conhecê-la. Talvez
ali, na incerteza dos nossos destinos eu encontrar-se nela a compreensão que
foi me foi roubada. Era provável que aquela desconhecida, cujo destino nos
reservou uma madrugada de aspecto triste, pudesse ser a pessoa que viria a
entender todas as minhas palavras antes incompreendidas. Mas ela levantou-se, corpo
curvado, fruto dos tantos anos que carregava nas costas. Será que iria embora?
Tive medo que sim, mas ela apenas aproximou-se do caixão e ficou observando com
o olhar longe a face do senhor que dormia alegremente o sono eterno.
Levantei, indo em direção ao
caixão. Ela parecia estar longe, talvez relembrando o passado, ou tentando
adivinhar o que o futuro tinha preparado para si própria.
-Teme a morte?-
-Talvez temer não fosse a palavra
certa!- Sorri, observando as flores já murchas que enfeitavam o caixão –Mas já
me questionei sobre como e para onde iria depois de partir. Não sei ao certo se
posso chamar isso de medo, pois o fato de morrer não aflige, ao contrário,
penso na morte como o mais instigante mistério da humanidade, e isso me
fascina. –
- O fascínio às vezes nos leva ao
medo, menina! Quando tinha por volta da sua idade costumava pensar na morte como
algo distante de mim, porém agora, observando esse senhor que dorme um sono
provavelmente sem sonhos, eu consigo sentir que ela está próxima. Mas também
não a temo. Não como os outros temem. Sei que morrerei e estou pronta para
isso. –
Suas mãos passaram delicadamente pelos
esbranquiçados e finos cabelos do defunto. E pude ver seus olhos enxerem-se de
lágrimas.
- Talvez a morte não queira para
si aqueles que se dizem está preparado para recebê-la. Talvez, ela deseje
pessoas que inspiram vida, que sentem necessidade de sentir o vento tocando a
pele, o sol queimando a face, a lua nascendo em meio à escuridão das montanhas,
e a vida se refazendo diariamente diante dos seus olhos. São pessoas que se
sentem tão felizes e realizadas que se quer conseguem pensar que a morte
existe, e que pior ainda: caminhamos todos em direção aos braços frios e
imortais dela. –
Ela sorriu, ainda com os olhos
repletos de lágrimas. Quis perguntar o motivo pelo qual chorava, mas achei que
naquele momento o silêncio fosse mais apropriado para a nossa compreensão. A
senhora, cujo nome ainda é um mistério, me entendia no silêncio. Eu também a
compreendia, e foi por compreendê-la que me afastei, deixando-a sozinha. Às
vezes a solidão dos pensamentos transborda-se, e a alma precisa se recolher.
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