Remanescências
Talvez, o meu maior problema sempre
tenha sido meu comportamento um tanto anormal, diante de fatos que fariam
qualquer outro ser humano agir contrário, aos meus pensamentos. Lembro que
quando criança, nunca pude ser comparada a filha da vizinha, que acordava às
dez da manhã e passava boa parte do dia vendo TV. Tudo em mim era oposto. Amava
o cheiro do café fresco da minha mãe logo cedo, pela manhã e a estranha e belíssima
forma como o sol saía por entre os telhados. Confesso até que muitas vezes
imaginei como seria ter a agilidade de subir em um deles e de lá, ver o nascer
do sol.
Não, por mais que eu tentasse, jamais
conseguiria ser como as meninas da rua, com seus batons vermelhos e seus
sussurros e risadinhas sobre garotos. Na plena verdade da minha infância eu não
entendia como alguém poderia simplesmente deixar uma boa brincadeira de lado e
ficar ali, sentada, esperando ser notada por um garoto magricela e de cabelo
estranho.
Não havia tempo nem tampouco disposição
para isso. Tudo que eu queria era que o céu derramasse uma grande chuva e que
mamãe deixasse eu tomar banho pelas calçadas da vizinhança, correndo contra o
frio que vez ou outra, fazia meu queixo tremer. Nada de garotos ou de meninas
com suas maquiagens fortes e suas poucas idades. A vida era resumida em criar
aventuras, falar sobre bruxas, acreditar que o bem poderia vencer qualquer
coisa. Era assim nos livros. E se estava nos livros, eu acreditava fielmente em
cada linha.
Cresci, é verdade. Mas continuo tendo
essa mania de não pertencer a nada que me rotule e me coloque dentro de uma
caixinha. Sou a adulta estranha, meio esquisita, que visita cemitérios e ler,
ler muito, tanto quanto escreve. E acredito que aquela criança que vivia
caindo, ralando os joelhos, mas sempre levantava, ainda está aqui, pronta para
passar um mertiolate no coração e seguir viagem.
Porque é assim que se aprende a viver.
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